Amor
- Cristina Belém
- 17 de abr. de 2015
- 2 min de leitura
Ela está a viver um processo de Alzheimer, essa doença que surge sem fazer barulho e que mina de forma insana. Ele acompanha-a todos os dias, mulher da sua vida, ao seu lado nessa senda, como se fosse uma missão. Ambos com oitenta e tal anos. Ela vai esquecendo alguns detalhes e ficando quase obcessiva com outros. Vai perdendo eficácia, vai tropeçando nas tarefas. Ele segura-a num abraço invisível, dando-lhe diligentemente a medicação. Vai cuidando sempre, às vezes com cansaço.
Há uns dias, ao serão, ela não o viu na sala. Chamou: "A telenovela já começou...". Ele não respondeu. Passados minutos ela reclamou a sua companhia com firmeza: "Mariiiidooo, vem sentar-te aqui!" E ele foi, incapaz de lhe fazer frente com desagrado, cedendo às suas teimosias adoentadas. Percebendo que escondido nos comportamentos alterados está o amor que os aproximou um dia.
Que curiosa forma de a vida testar os seus afetos, o seu amor um pelo outro. Mas o tal amor que os juntou há anos, que cresceu com eles numa vida longa e que foi testado nas travessuras do quotidiano, está lá, presente nas entrelinhas.

Tenho tido o privilégio de ser, de vez em quando, testemunha destes amores que se enraizam nas pessoas e que perduram, dos afetos simples que iluminam as memórias mais recônditas.
Durante um mês e um dia, escutei o Sr. F desfiar em palavras o novelo da sua vida. De quando, adolescente e aprendiz de marceneiro, veio para Lisboa. De histórias sobre os filhos, sobre os netos, sobre os amparos e os desamparos, sobre a sua linda mulher que cativou na juventude. Reparei que algo ali era constante: os afetos perduravam acima de tudo, intensificando o significado dos seus relatos. Nos seus últimos dias, quando o Sr. F já não conseguia falar, era eu que desfiava o seu novelo, falando baixinho para que o seu coração pudesse ainda escutar.
O amor é mágico, milagroso, intemporal. Por vezes fala-se de "amores que matam", que "fazem mal", que "prejudicam". Não incluo essas relações contaminadas na catalogação do amor, dos afetos doces, daqueles que são alimentados pelo coração e também o alimentam.
O amor, esse, é mágico. Milagroso. Intemporal.
Comments